25.5.13

Análise sobre a série "Livrai-nos de todo o mal"

O trabalho de Wagner Almeida foi vencedor do IV Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia. Instigante  e de forte sensibilidade, o repórter fotográfico levou a premiação na categoria que dá tema a edição deste ano: "Homem Cultura Natureza".

A série pode ser vista até este domingo, 26, na Casa das Onze Janelas, junto a obras de mais 21 artistas visuais brasileiros, que este ano integram a exposição principal do prêmio. 

"Livrai-nos de todo o mal", que mereceu ótimos comentários do júri, formado por Luiz Braga, Armando Queiroz e Maria Helena Bernardes, agora recebe uma análise crítica da socióloga Marly Silva. Ela faz uma leitura sobre o que está por trás das imagens captadas por Wagner, atuante na área do jornalismo policial. 

A arte da reaparição nas fotografias de Wagner Almeida

Por Marly Silva*

Por que se grita tanto no Rock? Essa pergunta ocorreu ao jovem filósofo Charles Feitosa que, fascinado pelo grito na arte, perpetrado desde o célebre quadro de Eduard Munch (1893), procurou nos dar uma resposta. Dá-la ao público, pois o filósofo ligado no mundo sabe que o que lhe ocorre, muitas vezes está em milhares de outras cabeças, no caso: amantes, desafetos ou apenas curiosos do Rock, mas só os filósofos têm tempo, paciência e ferramentas conceituais para aventurar-se nessa procura do aparentemente prosaico, sem valor. Singela é a sua resposta. 

O grito aparece na arte porque é expressão da condição humana, ou melhor, é um meio de expressar variadas emoções: prazer, felicidade, revolta, dor, horror, “sensação de impotência, quando não se acredita em mais nada, ou pior, só se acredita no nada”. 

Agora, como o grito, tido pelos antigos como “coisa feia”, rompeu esta barreira (estética) e entrou para o campo artístico, é uma outra história. Mas na arte musical, não só os roqueiros gritam! Elis Regina também gritava escancaradamente nos Festivais da Canção dos anos 1960, expressando um misto de rebeldia, provocação e êxtase. 

Num show da banda Iron Maiden, no qual o vocalista incitava a plateia do Rock in Rio com o refrão: Scream for me, Brazil! (grite por mim, Brasil), nosso filósofo e mais dezenas de milhares de outras pessoas gritavam juntos “meio sem saber por que, mas felizes em se esgoelar até perder o fôlego”. Coisa de jovem, ora bolas! 

Situação oposta é aquela que encontramos na série de fotos em exposição do jovem repórter fotográfico Wagner Almeida. No lugar do grito harmônico ou hipnotizante do rock, o silêncio fúnebre de corpos silenciados a bala, executados em lugar ermo, abandonado, onde impera a lei do silêncio. 

Se houve gritos durante o sinistro não sabemos, nem as fotos revelam, mas podemos imaginá-los e ouvi-los como um eco que ressoa no grande salão da “Casa das Onze Janelas”, tão fortes são as imagens de Wagner, o que lhe valeu uma premiação no IV Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia. 

O silêncio dos corpos tombados projeta o grito não só dos que foram executados, mas também dos que testemunharam e sobreviveram (sabe lá até quando, devem se indagar) às perseguições, às chacinas, às “batidas”, às emboscadas, aos tiroteios, às balas perdidas, às invasões arbitrárias e violentas de domicílios, aos aprisionamentos recorrentes dia após dia. Portanto, a paz que temos aí é a paz dos cemitérios... 

Nas fotos de Wagner, um enigma: corpos tatuados com imagens de santos católicos ao lado dos códigos de uma gramática violenta. O que significa essa relação aparentemente contraditória? Ele tenta decifrá-la. É difícil... Compartilho sua inquietação e me atrevo a uma aproximação possível no exame da relação que une a violência e o sagrado no contexto social vivido por jovens da periferia envolvidos em conflitos violentos. É um desafio que a própria antropologia religiosa teve dificuldades em responder satisfatoriamente até hoje.

“Livrai-nos de todo o mal”, título que dá nome à série fotográfica premiada, constitui uma crônica da morte anunciada e consumada que nos instiga a pensar os porquês do crescimento desta violência destrutiva que paradoxalmente é convertida em objeto publicitário (“chicote neles” é uma das peças que nos remete ao anacronismo dos castigos aplicados aos escravos), vendida como se vende bens de consumo duráveis, a exemplo dos “cadernos de policia” e dos programas de “cobertura policial” (“Metendo bronca” é o mais sinistro) patrocinados por supermercados, cervejarias e até pela Prefeitura Municipal de Belém; será isso o significado do terceiro “S” da tríplice promessa de campanha do alcaide?

Parece-nos que vigora um pacto suprapartidário de exposição sistemática e agressiva do jovem pobre envolvido na economia dos negócios ilícitos onde a ausência de instâncias estatais regulatórias encontra na violência interpessoal e grupal a forma de resolução dos conflitos. 

Essa verdade levou o sociólogo Fernando Henrique Cardoso a engajar-se na luta pela descriminalização da maconha que ele como presidente não conseguiu emplacar, ao contrário do nosso vizinho, o Uruguai de José Alberto Mujica Cordano. Por outro lado, são tantos os casos revoltantes de violação de direitos de simples suspeitos, detidos e inocentes, que já deveriam ter levado o Ministério Público Estadual a tomar providências contra o uso abusivo do poder policial e midiático que fere direitos constitucionais e universais da pessoa humana.

Exemplo inacreditável é o caso recente de uma mãe moradora do bairro do Guamá que, transtornada pela morte súbita da filha, é tida como suspeita de tê-la assassinado; é presa, algemada, escoltada até a delegacia, filmada, fotografada, e constrangida a responder ao vivo a uma repórter por um crime que não existiu; tenta-se frente às câmaras arrancar alguma confissão da pobre mulher! Quanta sensibilidade jornalística... 

Polícia e imprensa parecem atuar como cúmplices, construindo um cenário que beira a ficção. Além disso, tais programas ocupam um tempo extraordinário na programação local seguindo uma lógica banal: se a tragédia humana dá ibope, atrai uma multidão de curiosos, então, por que não explorá-la convertendo-a em “currículo áudio visual” com patrocínio do mercado e assim, incitá-la mais e mais sob o aparente pretexto de combatê-la?

Afinal, é certo que o resultado aparecerá no próximo sufrágio. O império desta razão cínica destrói, antes mesmo que nasça, qualquer possibilidade de instituição de uma ética do bem estar social comum na cidade, de onde poderia advir a esperança de uma condição de segurança pública que hoje não passa de miragem. Jean-Pierre Dupuy nos ensina, “se nos esforçamos sempre em aumentar a eficácia dos meios violentos para conter a violência, mais inatingível ele (o reino do amor) fica”. 

A história do século XX nós dá exemplos emblemáticos da verdade contida nestas palavras. Só os cínicos não vêem, porque a estupidez e a hipocrisia os cegou. A igreja, o crime organizado e o braço armado do Estado (segurança pública) são instituições poderosas que compõem a vida e o imaginário do jovem da periferia. Num sermão, ele ouve que durante mais de dois mil anos os profetas repetiram: Deus não quer sacrifícios. 

Na Bíblia, ele lê: não acreditem que eu tenha vindo trazer a paz sobre a terra: eu não vim vos trazer a paz e sim a espada (Mt. 10:34). Num lixão de papéis recicláveis, ele encontra uma reprodução da tela de Caravaggio baseada no texto bíblico em que Deus ordena Abraão (com a faca em punho) a sacrificar o próprio filho e o anjo lhe oferece a ovelha para livrar o filho da imolação pelo pai. Como ele processa todas essas falas e imagens, fragmentadas e contraditórias? 

Quem vai lhe explicar a exegese do texto sagrado e de como a vingança e os rituais de sacrifícios foram historicamente transformados em tribunal do júri e no sistema penal que temos hoje? O jovem pobre nasce excluído das possibilidades de entendimento da cultura em que vive. 

Além disso, está assujeitado a estes poderes arbitrários, marcados por contradições e ambiguidades e tem de conviver com eles como alma aprisionada em múltiplos conflitos e violações cada vez mais destrutivas, numa espécie de “campo de concentração a céu aberto” (como bem define o sociólogo Edson Passetti), já em idade muito precoce, quando ainda não consegue alcançar o discernimento da miséria de sua condição social. E quando o alcança, se rebela ainda mais, e ao rebelar-se, se expõe às agressividades da repressão disciplinar e aos dispositivos da violência simbólica, acionados em viva voz como um teatro do absurdo nas telas da TV com as câmaras em close penetrando a retina dos seus olhos em corpos acuados.

Na condição de professora, conheci muitos que encontraram uma rota de fuga e resistência ao meio adverso e árido onde nasceram, mas muitos milhares de outros mantêm-se na sujeição e servidão. 

Portanto, não espere gentilezas quando um deles lhe anunciar um assalto na janela do seu carrão 4x4 com uma arma que pode ser até de brinquedo, só para “dar um susto” (jargão que compõe o repertório da cultura da violência e que circula em todas as classes sociais). 

Eles estão ali cumprindo ordens superiores, seja lá de onde for. Suas vidas são nervosas e impacientes desde quando nascem, numa cidade que lhes nega moradia e dignidade, mesmo em plena era do “Minha Casa Minha Vida”, o que denuncia a irresponsabilidade criminosa dos poderes públicos municipais em Belém. 

Poderes que também se mostram incompetentes para regulamentar leis que há muito vigoram em outras cidades, como a outorga onerosa, que obriga que parte da riqueza advinda do boom da indústria da construção dos condomínios de luxo, shoppings e espigões em geral se constitua em fundos públicos destinados à construção de equipamentos urbanos como centros culturais, teatros, bibliotecas, escolas de formação, laboratórios-oficina de arquitetura para soluções de habitação popular com conforto térmico nos bairros da periferia tropical. 

Por que a periferia não pode ser palco da filosofia, das artes e de uma economia cultural com geração de empregos? Não é dela que sai o operariado construtor de todas as riquezas arquitetônicas e a empregada doméstica que limpa a casa das madames? Por que filho de operário e empregada doméstica teriam de seguir o mesmo? Por que não pode ser filósofo, dramaturgo, arquiteto? Porque “artista” ele já é, na arte de sobrevivência no deserto cultural onde se impõe a lei do mais forte. 

Que venham outras premiações para o Wagner Almeida. Quem sabe tomadas instigantes de um show do Emicida nos bairros pobres da periferia de Belém onde a rapaziada possa cantar e gritar como deve ser: feliz da vida! com música de qualidade feita pensando nela, para ela. 


*Marly Silva. Socióloga, professora adjunta da UFPA. Faz um doutorado na área de sociologia da cidade brasileira na PUC-SP. A série de fotos Livrai-nos de todo o mal que compõe o IV Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia pode ser vista até amanhã 26 (domingo), na Casa das Onze Janelas, no horário das 10:00 às 14:00 horas.

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