31.10.13

Cotijuba é cenário e inspiração para o cinema

Depois da estreia, com sessão lotada no Cine Líbero Luxardo, deixando mais de 100 pessoas do lado de fora, “A Ilhaestá sendo lançado com exibições outras, espalhadas em espaços diversos na cidade. Nesta sexta-feira, 1º de novembro, às 19h30, tem sessão na Casa Dirigível - Espaço Cultural (Tav. Padre Prudêncio, 731 - entre Gama Abreu e Carlos Gomes), no dia 7, integra a programação da X Mostra do Curso de Artes Visuais e tecnologia da imagem (Unama - Alcindo Cacela, Auditório D-200), às 19h e, de 19 a 24 de novembro, sempre às 17h, ficará em cartaz no Cinema Olympia. Tudo com entrada franca. O diretor conversou com o blog e contou mais sobre a produção. 

Além de uma bela biodiversidade, a ilha de Cotijuba, situada próxima a Belém, possui uma vivência de crueldade que até hoje impregna a memória dos paraenses e que inspirou o cineasta Mateus Moura a filmar seu primeiro longa metragem de ficção. Para entender melhor, vale saber que quando foi descoberta, a ilha de Cotijuba era habitada pelos índios Tupinambás e que foram eles que a batizaram. Em tupi, Cotijuba significa "trilha dourada", o que tem a ver com as falésias que se expõem em argila amarelada, compondo o solo da ilha. 

Não são apenas as lendas indígenas, porém, que povoam o imaginário da população. Conhecida por sua biodiversidade e atraindo veranistas, a ilha tem uma história de violência e arbitrariedade. Em 1784, integrando Belém por causa da comercialização do arroz cultivado no Engenho Fazendinha, assim que este foi desativado, a ilha passou a ser habitada por famílias caboclas que sobreviviam principalmente do extrativismo. 

Cotijuba, ruínas do Educandário, em sua entrada
Nos idos de 1933, quando a violência imperava em Belém, foi inaugurado, em Cotijuba, o Educandário Nogueira de Faria, construído para abrigar menores infratores, mas que durante a ditadura militar, abrigou presos políticos. Em 1968, foi erguida, também, uma penitenciária que, por algum tempo, coexistiu com o educandário. 

Quando este foi extinto, a ilha se transformou em ilha-presídio, recolhendo condenados e presos políticos, adultos e menores, e protagonizando tempos de crueldade, que ficaram na memória e impregnam as histórias contadas na ilha até hoje. Desativada na década de 1970, com a inauguração da Penitenciária Estadual de Fernando de Guilhon, em Americano, o que restou da Colônia Penal de Cotijuba foi suas ruínas, que serviram também como locação para o longa metragem. 

Mateus soube reunir parte dos ‘causos’ macabros e complexos que circundam a história da Ilha, que já foi chamada de “Alcatraz Amazônica” e “Ilha do Diabo”. E por trás das ruínas que continuam lá, há histórias contadas de forma tensa e contraditória, incluindo fatos como tortura de presos políticos, entre outras mazelas humanas.

“Enfim, é de todo esse imaginário (“lendas” e “fatos”) que o filme se embriaga com lucidez e inocência para então construir sua ficção”, diz Mateus Moura. Cineasta, performer, ator, músico entre outras aptidões desenvolvidas no universo artístico, rural e urbano, ele conversou com o blog e contou mais sobre o processo de filmagem de “A Ilha” e sobre este imaginário que o inspirou.

Mateus Moura, o diretor
Holofote Virtual: Dentro desse contexto histórico que citamos acima, qual trama se estabelece no filme? E em que gênero você o situaria? 

Mateus Moura: Sabe que contar filme é coisa tão estranha pra mim? Antes d’A Ilha’ ficar pronta eu tinha que tentar isso: contar o filme através das palavras; e sempre foi um desastre. Agora que o filme tá pronto, e tem uma sinopse (que foi tão difícil talhar), não vejo realmente necessidade de tentar contar o filme. Até porque filme é pra ver e pra ouvir. 

Mas recentemente me vieram algumas definições, que talvez traduzam um pouco a tentativa de compreender onde o filme se aventura enquanto gênero: “um culto ao oculto”, “uma elegia histórica”, “um suspense dalcidiano”, “um drama familiar”. Foram categorizações que surgiram até o momento... Esclarecendo um pouco também essa questão de “uma história ficcionalizada do cotidiano ribeirinho”, não é bem isso... É justamente o casal forasteiro, da cidade, que vai morar na Ilha - a fronteira entre civilização e floresta, isolada. 

O nosso velho clichê do gênero horror onde o personagem racional, civilizado, vai adentrando o misterioso, o primitivo, sem se preocupar, até que é devorado por ele. Dessa regra de gênero construímos um “filme de personagens” com intenções de criar um mito, que seja, no seu “era uma vez”, metáfora de nossa era, e, não obstante, vazio potente para qualquer espectador ativo fantasiar os seus sentidos. 

Em uma das cenas...
Holofote Virtual: Um longa metragem não é fácil de fazer, ainda mais na Amazônia. Quanto tempo você levou pra concluir esta empreitada? 

Mateus Moura: Este é um projeto de vida&arte: dedicar, em sacro ofício, o tempo necessário que uma Obra precisa enquanto forma para se moldar. Isso, lógico, tendo como limite o nosso nada suave contexto. Levamos um ano, sendo seis meses dedicados quase diariamente e outros seis, como podíamos. O projeto teve seu primeiro impulso à realização em agosto de 2012. 

Morei em Cotijuba de setembro a dezembro. Lá, com parceiros, construímos o roteiro, pesquisamos locações, ensaiamos atores, afinamos a equipe. De novembro a fevereiro rodamos todas as cenas, em dias que podíamos reunir todo mundo. De fevereiro a agosto desse ano, construímos o som, editamos e finalizamos. Esse é o percurso de “A Ilha”, produção da Maria Preta, em parceria com a Insular Produções e a Coletivo Quadro a Quadro – pequenas produtoras amazônidas. 

Equipe trabalhou intensamente
Holofote Virtual: E também tem uma equipe extensa ... 

Mateus Moura: São tão importantes todas as mãos, corações e mentes que se doaram com toda criatividade para esse projeto que eu preciso citar cada uma, mesmo que brevemente. No elenco, Kid Quaresma, o nosso Nazareno, fiel companheiro e de uma solidariedade imensa, também escritor de mão cheia e que participou da feitura do roteiro; Carline Ramos, mãe, sensível atriz que se entregou de forma plena para o seu processo, mesmo com o tempo sempre apertado.

Também tivemos Tia Lili, nossa querida parteira, espontânea e sempre acolhedora; Adilardo Seabra, grande parceiro, nos brindou com suas experiências de vida e sua presença transcendental; Paulo Marat, a voz retumbante do profeta, e Rosilene Cordeiro, a estrela da noite, fulgurante e poderosa, receptiva e bela, vanguardista e ancestral. 

A atriz Rosilene Cordeiro
Na equipe, dois grandes amigos, onde a comunicação flui mais fácil que qualquer rio. 

Eles foram os assistentes de direção: Felipe Cruz e Rafael Couto; Rodolfo Mendonça, genial artífice, corajoso e visionário, foi o braço direito: fez direção de fotografia, câmera, montagem e finalização.

O Raquel Minervino foi o anjo que guardou todo o processo, e, que intuitivamente, fez um áudio direto primoroso; Raphael Vaz, sensível músico, com o seu rigor minimalista teceu toda a atmosfera que abraçou o projeto. 

Na direção de arte só os melhores figurinistas, cenógrafos, costureiros, carpinteiros, loucos da cidade: Virgílio Moura, o Zé do Caixão, Romário Alves, a pus, Mauricio Franco, o olhar que recebe, e Ila Falcão, a força. Todo mundo foi produtor do processo, e, além dos que já citei acima, tivemos ajudas preciosas da D. Madá e D. Conci, generosas mães, de Cássia Lorena e Carolina Rodrigues, jovens interessadas e ativas, de Marcelo Marat e Juliana Maués, que, mesmo distantes, deram contribuições narrativas valiosas. 

Quem assinou os cartazes foram: Paulo Evander, que também fez a vinheta e a logo geniais da produtora, além de fazer uma ponta no filme e o Maécio Monteiro, que também abriu as letras dos créditos. Essas foram as pessoas que trabalharam mais diretamente no filme, além de outras que ajudaram de forma indireta, na pré ou na pós-produção, com seu olhar e suas opiniões. 

Nas ruínas....
Holofote Virtual: Como foi compartilhar as dores e as delicias de se fazer cinema por aqui? 

Mateus Moura: Não sei o cinema, a linguagem, mas o filme, a obra, é algo extremamente coletivo, e sem todas essas mãos não teríamos esse resultado.

Se este filme é dedicado a alguém, além da Cobra Grande e do Grande Rio, é a estes obreiros, que, acreditaram desnecessariamente naquilo que nem víamos. O filme foi rodado na ilha do Cotijuba, na Baía do Guajará, na Baía do Marajó e na Ecovila Iandê, na Comunidade de São João Batista em Santa Bárbara. 

As filmagens foram sempre muito corridas contra o tempo, mas sempre momentos de êxtase e comunhão muito intensos entre a equipe. Essa equipe, com raras exceções, foi a primeira que eu trabalhei, que realmente tinha gozo por filmar! E isso foi maravilhoso! Existem alguns causos típicos do Cotijuba, que aconteceram durante as filmagens, mas seria extenso contar nessa entrevista (risos).

Mateus dirigindo uma das cenas
Holofote Virtual: Eu imagino (risos). Mas após todo o trabalho, sempre terminamos com a montagem. Como foi pra você ter que tomar decisões de cortes, enfim, fechar o filme para ser trazido a público? 

Mateus Moura: Uma questão interessante a se comentar sobre a questão da montagem do filme foi a revelação da metragem do mesmo. Desde que o projeto foi concebido sabíamos que não seria um curta-metragem, mas julgávamos que se tratava de um média. 

Antes da montagem, no entanto, já desconfiávamos que se tratava de um longa. O filme tem 60 minutos. Na verdade, a obra sempre foi concebida analogamente ao que seria o gênero (literário) da “novela” - nem “conto”, nem “romance”. E acho que esse tempo é bem fiel ao concebido. A verdade é que não nos preocupamos tanto com isso como alguns jornalistas tem pensado, o filme é que diz o tempo que ele deve ter, nosso trabalho é apenas esculpi-lo. Como não temos compromissos comerciais, gastamos nossos neurônios com outras questões. 

O cinema é, antes de tudo, criação de tempo, e se o espectador esquece o cronológico durante a projeção, ou mesmo esquece essas convenções puramente mercadológicas que querem categorizar filmes por sua duração para poder empacota-los mais facilmente, é aí que sentimos de fato que o dever foi cumprido. 

Todas as locações, na ilha
Quem assina a montagem sou eu e o Rodolfo Mendonça. A montagem teve três momentos: uma durante a pré-produção (pois o filme, antes de filmar, já estava montado na cabeça).

Outra, foi durante a pós-produção (pois o momento mágico da ilha de edição é também um momento de criação, e ali se descobrem relações entre planos, além de todo o ritmo do filme, sem contar a questão da trilha sonora, que é o que vai realmente fazer pulsar a alma das imagens).

Em um terceiro momento, depois de um mês distante da ilha de edição, com o primeiro corte rodando entre olhares, em que colhemos opiniões, percebemos onde e como o filme fisgava o público, e fizemos um último corte antes da estreia, a partir das nossas reflexões acerca dos contatos dos outros.

Trabalho de ator e dedicação ao cinema
Holofote Virtual: Agora vocês estão em fase de lançamento. Quais os projetos para o filme? 

Mateus Moura: O filme já tem vários convites locais para exibição gratuita e com bate-papo. Até o fim do ano, “A Ilha” será exibida toda semana! Estamos montando essa agenda e confirmando tudo, vamos disponibilizá-la pra galera se agendar melhor. 

Enquanto isso, estamos pré-produzindo o que consideramos a principal turnê do filme, pela região metropolitana de Belém: Cotijuba! Mosqueiro, Icoaraci, Ananindeua. Talvez Colares, Castanhal... a ideia é levar não só “A Ilha”, mas as produções independentes que estão sendo produzidas nessa região marginal. 

Nesse meio tempo pretendemos legendar e pesquisar os festivais, dentro e fora, ver o que é interessante. Achamos importante, antes de disponibilizá-lo na internet, fazer esse circuito de exibição nos cinemas. Não para prender o filme que eu sempre achei isso uma fuleragem! Mas para despertar também essa cultura de sair de casa pra ver um filme da sua região... fora o espaço inefável da sala escura! 

O diretor seguindo sua jornada
Holofote Virtual: E a carreira do diretor? O que andas tramando? És envolvido com teatro, música e muitas outras coisas também... Às vezes esta geração, a tua, me lembra Leonardo Da Vicci, que era várias coisas ao mesmo tempo, com talento... 

Mateus Moura: Recentemente as pessoas me questionavam: “ué, tu não fazia cinema? Porque tá te metendo com performance, música, teatro, literatura, permacultura, tu não tá perdendo o foco?” Eu, e acho que muitos da minha geração, não estamos mais pensando tanto em “criar uma carreira”, isso é consequência. A prioridade é restabelecer o “hommo ludens”, fazer brilhar de novo esse lado, amiúde esquecido pelos labirintos políticos e coerentes da vida adulta. 

A causa de tudo é a brincadeira, e o gozo da criação. Além disso, acredito, mais do que nunca, que quanto mais damos voltas fora da linguagem, mais a enriquecemos. É importante conhecer profundamente o cinema para fazê-lo, mas só conhecê-lo profundamente é bem pior do que não conhecê-lo. Alguém que só sabe ler e escrever, e mais nada, tá bem pior que um analfabeto, que sabe pescar, dar um nó bem dado, dirigir um caminhão, dançar... 

Foi vivenciando performances, jogos teatrais, processos de composição musical, editoração de livros, plantando, que aprendi muita coisa de cinema recentemente. Sou radicalmente contra a “especialização”, pra mim ela só gera produtos estéreis. È a rua que dá o termômetro, o caos que alimenta, precisamos criar nos reinventando a partir da percepção da vida que pulsa pelas esquinas, sair dos museus, dos cursinhos, dos empreguinhos... e com esse material todo grafar nosso estilo, ir em busca da verdade pela busca dele. Precisamos reinventar essa região, de dentro!

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