22.1.16

"Tupy or No To Be" traz à Belém a nossa questão

Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz, "Tupy Or No To Be - Teatro, Cinema e Novas Midias" chega pela  vez na capital paraense, trazendo espetáculo, oficina e um documentário premiado sobre o massacre dos índios da Gleba Corumbiara (RO). A diretora Verônica Fabrini, bateu um super papo com o blog.

“Tupy or No To Be: Teatro Cinema e Novas Mídias”, da Boa Companhia (Campinas – SP) inicia sua programação em Belém neste sábado, 23, pela manhã, com a oficina “Um Corpo em estado de viagem”, em que compartilha com os atores paraenses e estudantes de artes da cena, as técnicas da montagem de “Cartas do Paraíso”, espetáculo que será apresentado sábado, 23, às 21h, e no domingo, às 20h, no Teatro Waldemar Henrique (Praça da República, s/n), onde também, no domingo, será exibido, às 16h, o documentário Corumbiara (Vicent Carelli), seguido de bate papo com a diretora da companhia, Verônica Fabrini.

A companhia já passou por várias cidades paulistas e fez uma temporada, na capital, ocupando o Teatro de Arena Eugênio Kusnet. Depois fez Rio de Janeiro, no Caixa Cultural, e ainda se apresentou no festival Fuga, em Goiania, em Cuiabá, e de um festival internacional em Lima, no Peru.

Apoiado em pesquisas bibliográficas, iconográficas e sonoras, “Cartas do Paraíso” constrói uma encenação a partir das informações que constam nas cartas escritas por jesuítas, exploradores e viajantes, nos primeiros tempos da também chamada Pindorama ou mítica Hi-Brasil.

A radical diferença entre as duas visões de mundo foi o ponto de partida para a criação de uma poética luso-tropicalista, pautada na mestiçagem, no encontro e no confronto de imaginários tão ricos: a de Portugal renascentista e mercantilista e a cultura indígena brasileira, sendo ela mesma extremamente múltipla. 

Sem necessariamente reconstruir a história, mas acompanhando as metamorfoses da ideia de Paraíso, a peça projeta o público neste imaginário. Para tal, o espetáculo se nutre de elementos de outras artes cênicas como a dança, música, performance e mídias áudio visuais. No entanto, é a construção do corpo cênico o elemento central de toda criação artística do grupo.

O projeto também vai exibir “Corumbiar”, do indigenista e antropólogo franco-brasileiro Vicent Carelli, que acompanha o indigenista Marcelo Santos, em sua denúncia do massacre dos índios da Gleba Corumbiara (RO). Carelli filma o que resta das evidências. Marcelo e sua equipe levaram anos para encontrar sobreviventes e duas décadas depois, a versão dos índios é revelada.

Holofote Virtual: A história indígena no país sempre foi algo que, seja para o  bem ou para o mal, se fez questão de manter na invisibilidade. O espetáculo traz isso à tona de uma maneira poética, mas contundente. O que mudou nisso tudo desde a colonização?

Verônica Fabrini: Nesses cinco anos com o projeto, percebemos que o movimento indígena vem ganhando mais e mais visibilidade, não só no Brasil, mas na América Latina também. Desde o já antigo e emblemático movimento de resistência de Chiapas no México (EZLN, desde 1996), passando pela eleição de Evo Morales, por exemplo.

Acredito que percorrer esse tempo todo com essa peça, nos trouxe a certeza da importância e urgência da questão indígena, tanto para o país, quanto para América. Nosso "terceiro continente" precisa reconhecer sua raiz indígena e isso quer dizer uma forma completamente diferente e única de se entender o ser humano e sua relação com o planeta. Aprendemos que a terra é o corpo do índio e isso tem implicações muito profundas.

Holofote Virtual: O projeto também foi apresentado em aldeias, como foi isso?

Verônica Fabrini: Dessas viagens, guardo com muito carinho e momentos de muito crescimento para o trabalho, as apresentações em aldeias, como Krucutu , na grande São Paulo e em Cananéia, no litoral paulista. O contato direto com a população indígena foi especial pois podemos perceber de perto nossa distancia de um Brasil que infelizmente desconhecemos. 

Ficamos impressionados de ver, na própria grande São Paulo a enorme população guarani, preservando sua cultura e numa luta organizada por seus direitos. É impressionante nosso desconhecimento tanto da riqueza dessa parte "desconhecida" da população e da própria história do país. Nos sentimos muito próximos dos personagens da peça, como se estivéssemos nós mesmos "descobrindo" o Brasil, e com isso, o desejo (utópico?) de agora fazer diferente... digo, o desejo de realmente reconhecer essa ancestralidade. 

Holofote Virtual: E o público, será que entende o "recado"?

Verônica Fabrini: Nosso desejo tem sido o de tocar as pessoas quanto a essa questão, ao menos de colocar essa pergunta: o que é, quem são, porque foram e são sistematicamente exterminados? Quais os interesses por trás (e muitas vezes na frente) desse extermínio? 

Na nossa percepção, esse recado tem sido dado, e a recepção tem se mostrado generosa. Não é um espetáculo fácil, didático ou mesmo dogmático. Trabalhamos muito com imagens, num teatro que vai do mais simples e óbvio da linguagem teatral, na primeira parte do espetáculo, transformando-se numa linguagem bem mais performatica e quase ativista na segunda parte. 

Colocamos perguntas e percepções, então nossas respostas de público também variam, desde reações mais emocionais até questionamentos mais racionais. Quando apresentamos em lugares que tem um contato mais direto com populações indígenas, a recepção mostra uma identificação maior; já em lugares mais distantes dessa realidade, a reação já é mais ligada a poética da cena, de como trabalhamos a narrativa.

De modo bem geral (se é que é possível falar assim), temos a sensação de que o recado está chegando. E acredito que as grandes transformações, as revoluções mais potentes, começam no campo do sensível e no imaginário. Acho que o espetáculo vem conseguindo isso, tocar no nosso imaginário de "colonizadores" e nos fazer questionar. É uma questão urgente. 

Holofote Virtual: Vocês pretendem com isso dar voz aos indígenas?

Verônica Fabrini: Não queremos "dar voz" a essa população. Longe disso! O movimento indígena sabe muito bem como fazer isso. Queremos tocar nessa "ferida" histórica; falar para aqueles que sempre viram na questão indígena uma questão "só deles". 

Queremos que percebam que é muito mais do que isso. Tocar na questão indígena é falar sobre a propriedade privada da terra, sobre o uso da terra, sobre nossa relação com a Natureza. Por isso é tão importante.

Holofote Virtual: Tudo parte da pesquisa, e como tantas informações contribuíram para a forma final da montagem?

Verônica Fabrini: A ideia do espetáculo nasceu da leitura de cartas de exploradores e de jesuítas no início da colonização. Depois foi se ampliando para outros campos, como o movimento modernista, o tropicalismo (pois ambos reivindicam uma tal "brasilidade"), cartas e manifestos do próprio movimento indígena: desde a carta dos Guarani Kaiowás do Mato Grosso do Sul, ou a carta do então presidente Evo Morales nas Nações Unidas. 

Fomos percebendo que mais de 500 anos já se passaram e a ferida colonial ainda está aberta, e como!!! Pessoalmente eu sinto uma imensa vergonha de ser branca e burguesa!!! De ser ignorante quanto ao passado do meu próprio país. Meu país??? 

Durante a pesquisa para o espetáculo foi muito duro o contato com os sucessivos extermínios, com a violência e o desrespeito com culturas riquíssimas. É duro estar no lugar do colonizador e não compartilhar com os valores deles. Isso foi uma "descoberta". Talvez essa seja uma das palavras mais importantes do processo: descoberta. Nos "descobrir" índios. Descobrir o que fizemos e ainda se faz com eles. Eles somos nós? Nós quem, cara-pálida??? 

Holofote Virtual: Como o espetáculo está dividido?

Verônica Fabrini: O espetáculo está dividido em duas partes: numa primeira, encarnamos quatro personagens na caravela que chegou por aqui em 1500. Os personagens: um degredado, um cartógrafo, um padre e um cômico. Aliás, essa foi também uma descoberta muito bacana para nós, do teatro. 

Saber que nas grandes navegações, o ator era fundamental nas viagens, tanto para entreter a tripulação nas longas viagens, quanto para fazer contato com populações "selvagens". Aliás, usamos até um trecho da carta de Pero Vaz de Caminha, aquela famosa, na qual ele descreve o encontro do cômico da embarcação com a população indígena nativa. 

Esta primeira parte é bem teatral, quase uma "historinha do descobrimento": o impulso aventureiro para o novo, a coragem dos viajantes, aquele espírito heróico dos Lusíadas, misturado com o medo do desconhecido. O primeiro encontro com o "selvagem". Aqui, o espetáculo é bem formal, com desenhos de personagem, marcação rigorosa da cena buscando atmosferas que misturassem o rigor de uma geometria renascentista, na qual o homem é o centro do universo, com uma religiosidade ainda forte, com noções de céu, inferno, paraíso, um grande e único Deus. Nessa tensão entre homem (navegadores), natureza (o mar) e Deus (o destino), a primeira parte se desenrola. 

Depois do "encontro" com o "selvagem", a própria linguagem da cena cena perde essa linearidade, o teatral cede lugar ao performatico, os tempos se misturam, o jogo com o material documental fica mais explícito no uso das imagens projetadas (que na primeira parte são mais atmosféricos).

Holofote Virtual: Claro que o documentário tem tudo a ver, mas como foi que o elenco, a direção tratou dele para a montagem?

Verônica Fabrini: Tanto nas questões de fundo (políticas/ideológicas) quanto como material de pesquisa para trabalho de ator, o filme de Vincent Carelli, "CORUMBIARA" foi fundamental. A temporalidade presente no documentário influenciou nossas "viagens no tempo", a gestualidade/corporeidade das pessoas nos guiaram, o senso de injustiça, o jogo de invisibilidade/visibilidade do índio. O documentário foi nossa estrela guia. Por isso é com grande prazer que trazemos o documentário como parte do projeto. É uma obra prima, quer como cinema documentário, quer como manifesto ativista.

Holofote Virtual: Quais as expectativas para a apresentação do projeto em Belém, onde, aliás, também teve extermínio indígena? 

Verônica Fabrini: Sim, temos a impressão que a questão indígena é um tema fundamental nessa região do país. Portanto, é para nós uma grande responsabilidade estar aí, e um grande prazer. No Norte, a Boa Companhia já esteve em Rondônia, Rorâima e no Amapá. É nossa primeira vez em Belém. Estamos torcendo para ter um bom público nas três partes do projeto.

É precioso para nós, podermos compartilhar esse "super trio": espetáculo/oficina/documentário, aqui. Queremos que o espectador tenha a possibilidade de passar pela experiência do documental (o contato direto, reflexivo e crítico) com o "mundo real", através do filme "CORUMBIARA". Que ele possa fruir a construção poética nascida do documental (o espetáculo CARTAS DO PARAÍSO) e que ele experiência no próprio corpo, ao menos um pouquinho, de uma parte de nosso processo (a oficina UM CORPO EM ESTADO DE VIAGEM). Dessa forma queremos compartilhar a razão/coração/sensação (documentário/espetáculo/oficina), que formam a totalidade do projeto. 

Holofote Virtual: E a Boa Companhia, como atua em Campinas, qual a principal linha de trabalho do grupo?

Verônica Fabrini: A Boa Companhia é um grupo com 25 anos de atuação ininterrupta. Temos um histórico com o que se costuma chamar de "teatro físico". 

Imagino que isso se deve ao fato de que eu, que sou a diretora artística da companhia, tenho uma formação em dança e costumamos começar nossos trabalhos por uma investigação sobre as corporeidades, os desenhos no espaço, os ritmos. 

Dando uma olhada no percurso da companhia, temos mais trabalhos a partir de temas e contos do que textos dramáticos propriamente ditos. Claro que não negamos eles, muito pelo contrário! Nosso primeiro trabalho foi com Otelo, de Shakespeare, depois vieram Nelson Rodrigues, Brecht e Beckett... Mas nossas investigações mais profundas foram com contos de Franz Kafka, de Hilda Hilst, e desde 2010, com Cartas do Paraíso. Gostamos muito de trabalhar com a palavra, com a música.

Temos uma pequena sede na cidade de Campinas, no bairro de Barão Geraldo, que é um sub-distrito da cidade, perto da UNICAMP, com um pequeno teatro de 55 lugares. Fomos Ponto de Cultura durante cinco anos e temos uma atuação local expressiva, participando do movimento de Teatro de Grupo do interior paulista.

Holofote Virtual: Em Belém temos muito teatro e excelentes companhias, mas a dificuldade de fazer e viver da arte é presente. E pra vocês, no outro lado do país, como é?

Verônica Fabrini Campinas não é uma cidade generosa com a produção local e como não há temporadas possíveis nos espaços da cidade, estamos sempre viajando muito. Pelo interior do estado, outros estados do país, festivais aqui e no exterior. Estivemos na Alemanha, Portugal, Rússia, Chile, Peru, Marrocos... Vamos explorando lugares, linguagens... 

Trabalhamos muito com parcerias com outros grupos, especialmente com o Matula Teatro, também com sede em Barão Geraldo e com outros artistas independentes. Não somos "filiados" a nenhuma escola específica, como, por exemplo, a antropologia teatral, ou algo parecido. Cada trabalho nos pede uma investigação diferente: danças de salão, view-points, danças brasileiras, canto coral, teatro brechtiano... Cada novo projeto é uma nova aventura. Claro que rastros vão ficando. Mas somos uma "metamorfose ambulante", como diria Raul Seixas...

Holofote Virtual: Os demais planos para este ano...

Verônica Fabrini Em 2016 vamos retomar o espetáculo PRIMUS, baseado no conto "Comunicado para uma Academia", de Franz Kafka, que é de 1999, mas que esteve sempre no repertório da companhia.  Retomar um dos espetáculos de nossa "origem", nos fortalece, nos faz recordar de onde viemos. 

Também seguiremos com "Cartas do Paraíso", pois achamos que a questão indígena é fundamental na atualidade. Estreamos no ano passado o espetáculo "Mujeres Violentas", em parceria com a diretora chilena Cláudia Echenique e o Matula Teatro, sobre violência contra a mulher e vamos circular com esse perfo-espetáculo durante esse ano, e seguimos numa outra parceria com o Matula Teatro, com o espetáculo "Agda", baseado no conto homônimo de Hilda Hilst, com direção de Moacir Ferraz, da Boa Companhia. 

Em termos de temas, pensando nesses quatro projetos de 2016, estamos em torno de ecologia (civilização e barbárie, com PRIMUS), questões indígenas (Cartas do Paraíso) e feminismo (Mujeres Violentas e Agda). Acho que os três são temas urgentes e fundamentais.

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