9.1.17

Pastorinhas, tradição esquecida em Belém do Pará

Ilustração: Paulo Mashiro
O blog publica hoje texto do professor Paulo Nunes. Estudioso dos autores da lusografia e da literatura brasileira de expressão amazônica, ele aborda a tradição das Pastorinhas, que ficaram em livros e em sua memória. A peça teatral cantada sobre o nascimento de Jesus é cada vez mais rara em todo o país.

Uma crônica sobre as minhas Pastorinhas em Belém 

"Aos que fazem da cultura um “front” de resistência, na pessoa de Albertinho Bastos, in memorian, dedico. Também à Iracema Oliveira e a  meus irmãos". Paulo Nunes

I

Vicente Salles (topo) e Albertinho Bastos (foto de baixo)
Quando discutíamos a possibilidade de estudar em um número de Asas da Palavra uma manifestação da cultura popular, fomos, numa fase primeira, imensamente tentados a escrever sobre bois-bumbás e pássaros juninos. Mas, trabalho exaustivo, as ideias foram transmutando-se e se direcionando para outro foco.

Daí surgir uma segunda possibilidade de trabalho: as pastorinhas. Antes de serem apagadas por completo do mapa cultural de nossa cidade, falemos delas, contribuindo para gravar alguma marca, pequena que seja, para a posteridade. Será querer muito? 

De minha parte, vale a confissão, a contribuição é mínima, quase inexistente. Por exemplo, não direi aqui, meu caro leitor, das pastorinhas satíricas que, especula-se, foram construídas por Bruno de Menezes e Rodrigues Pinagé, não tenho melhor referência sobre estas; também não direi das pastorinhas do cronista da saudade que foi De Campos Ribeiro, em Gostosa Belém de Outrora. Não tenho, nem de longe, a competência do mestre Vicente Salles, que escreveu um magnífico estudo, em seu Épocas do Teatro no Grão- Pará. Direi mais de mim, perdoem-me, e de minhas recordações, que propriamente das manifestações culturais.

II

As Pastorinhas de Pirenópolis (GO)
As pastorinhas ou pastoris, ao que se sabe, vivem, no Brasil, e, notadamente em Belém, um processo agônico. Chegaram até a região com a colonização lusitano-católica, no século XVII, e não mais deixaram de evoluir e aclimatar-se aos equatoriais ventos quentes da Amazônia. Mais proximamente, no início deste século XX, os pastoris tiveram bons momentos.

Os grupos Róseo e Azul competiam ferrenhamente, uma espécie de Remo e Paysandu do teatro popular belemense. Tanta disputa divertia para valer a população de Belém, ganhando os palcos da cidade.  A população respondia à altura e legitimava com a sua audiência viva. As famílias, independentemente da condição social, pobres e médias, escolhiam a peça e o preço mais condizente com a oportunidade. 

Agora, no entanto, esgarçaram-se os panos de cena, e o Estado - que deveria desde sempre intervir para prestigiar tais manifestações - iniciou um trabalho mais consistente a partir do processo de redemocratização política do país, pelos idos de 1983. Tal política, consistente, de resgate das manifestações populares em Belém do Pará teve início, mais propriamente, quando Paes Loureiro, primeiro momento, e Marcelo Mazolli, depois, assumiram a SEMEC (Josebel Akel Fares e Lindomar Teodora estavam, então, na coordenação de todo um processo segundo deu continuidade e ampliou o projeto iniciado pelo primeiro).

No entanto, quando Loureiro e Mazolli deixaram a direção da Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Belém, lá pelos fins dos 90, as palhinhas da manjedoura do Jesuscristinho queimaram-se em fogo brando, restaram quase que somente as cinzas das pastorinhas. E de lá para cá nada ou quase nada se viu.

Espero não estar sendo injusto, mas uma política estatal sistemática de auxílio e subvenção aos grupos de cultura popular deixaram de existir já há algum tempo, e com ela, os produtores culturais de Belém passaram, com o pires nas mãos, a sobreviver da teimosia e da necessidade irreprimível de fazer ecoar pelas esquinas da cidade seu canto de gloria in excelsior Deo.

III

Pastorinhas Filhas de Sion (PA) - foto do site Revista Pará+
Diante desta folha, eu vivo um impasse, inscrever-me ou registrar um desabafo? Pensar ou sentir? Busco na síntese uma resposta convincente quando esboço aqui meus mosaicos afetivos, minha “memória” pessoal.

Mas somente faço este registro porque penso que minha recordação pode contribuir, mesmo que discretamente, para o reaquecimento da memória cultural de Santa Maria de Belém do Grão-Pará. 

Belém hoje é uma metrópole destroçada pelo desafeto do povo e dos governantes. Nossa cidade vive - há uns 12 anos, pelo menos -, salvo algumas pouquíssimas exceções, de sucessivos descuidos governamentais e, como consequência disto, a nossa memória histórica e cultural acaba escorrendo pelo ralo do banheiro. 

Cumpro, portanto, um rito de passagem do campo pessoal para o social, da recordação (etimologicamente, re-cordis, do latim, de volta ao coração) para a rememoração, uma atitude pretensa e ilusoriamente épica, segundo os conceitos que desentranhei da teoria de Emil Staiger.  Se meu texto não cumprir este rito de passagem (não há, insisto, mitos sem ritos; e neste tipo de processo cultural, vejo o rito como algo fundamental para a sobrevivência das complexas malhas que constituem a cultura de um povo) não terei contribuído com esta revista e muito menos com a discussão em torno da sobrevivência das manifestações populares em terras belenenses.

IV

Presépio montado na Praça Batista Campos, em Belém
Meu primeiro encanto com a ritualização semiprofana do Natal se deu com as lapinhas, presépios muito comuns nas casas católicas de Belém de minha infância, pobres ou abastadas, elas estavam lá no cantinho da sala, no final do corredor... Na casa de papai, tia Yolanda eram quem melhor vestia o espírito da esperança cristã em um novo mundo, mais fraterno e justo. 

Ela não abria mão de comemorar o nascimento do salvador dos homens, e isso iniciava-se com a montagem do presépio natalino, da árvore de Natal feita de galhos enrolada em algodão, e estendia-se até a distribuição de presentes e a celebração na ceia. Mas o presépio de Yolanda, nem de perto (mesmo porque tinha outra função), lembrava a lapinha montada por tio Jaime, marido de tia Dária, outra irmã de papai. Era um encanto aquela cena. 

Dezenas e dezenas de pastores, reis magos, anjos, bois, vacas, carneiros e camelos compunham uma cena alegre. Às seis horas, as luzes do presépio eram acesas e Cristo vinha à vida com mais fervor ante nossos olhos meninos. Aquele presépio era uma sensação no quarteirão da rua 9 de Janeiro, na Cremação. De repente, a família Jaime troca de religião e... idolatria é idolatria. Assim todo o presépio, mais de cem peças, foi ao lixo. 

Uma pena! Ficamos com dor no peito, uma tristeza de pensar que não olharíamos mais o pintinho do Menino Jesus (queríamos saber porque os outros santos não tinham “pinto”, só aquele menino na manjedoura, tão branquinho e tão diferente de nossa morenez amareliça!), que não mais degustaríamos o bolo com Quisuco, servido na inauguração do presépio. Bem mas até agora, houve uma fuga parcial de tema, pois não?!...

V

O poeta encenou  As Pastorinhas
Meu contato com as pastorinhas se deu de modo interessante. O deus Chronos, senhor do tempo, fazia dezembro. Em Belém chovinhava fino. Belém, todos sabemos, sem chuva, não faz natal. Era chegar a festa de final de ano e tia Lucíola cantarolava umas modinhas diferentes. Lucíola, minha tiavó (na verdade, uma de minhas mães!), era muito rigorosa, austera, em alguns momentos, mas tinha sensibilidade artística. Depois soubemos o porquê.  

A família Nunes tinha pendores artísticos: Nelly, meu avô, era sapateiro e santeiro (mas de inúmeras outras habilidades); Oswaldo, tio de papai, era pintor e compositor, desenhava bem, lia e fazia partituras; Eduardo Nunes era diretor de teatro (dono da pastorinha As Belemitas) e atuava no extinto Palace, nas épocas de festa em Belém. 

E Lucíola? Só muito tempo depois eu descobri, por ordem de investigação de Cláudio La Roque, de O Liberal, que uma das cantigas que saíam de dona Lucíola pertencia à peça “Festa, Anos Bons e Reis”, de João Afonso, na qual ela fazia o papel de mãe de um garoto travesso que contava com mais ou menos cinco anos de idade. Este menino era Tony, o Antônio Tavernard.  Eis como as pastorinhas entraram pelos meus ouvidos se instalaram em minha alma definitivamente.

Tempos passaram. Já trabalhando como técnico cultural na SEMEC, fui levado a contactar com os grupos de bois-bumbás, pássaros e pastorinhas. Minha função, de fato, era a de ajudar a levar a cultura às escolas municipais, espaços sisudos e fechados à comunidade extra-escolar. Vivia-se o Projeto Contextual de Educação e Cultura. Vivia-se a década de oitenta. 

Pastorinhas Filhas de Sion (PA) - foto do site Revista Pará+
Hoje percebo que, embora com muito boa vontade, não tivemos fôlego para interceder definitivamente no mau humor pedagógico das escolas, mas sei também que deixamos - de algum modo - pelo mundo sementes que frutificaram. Mas nossa função não se resumia a meros contatos culturais nas unidades escolares. Tínhamos também de revezar serviço nas programações noturnas da SEMEC. Foi numa dessas empreitadas que recontactei com as pastorinhas. 

A Secretaria promovia, então, em conjunto com as associações de folclore e corais de Belém, o festival de coros natalinos e pastorinhas na Igreja das Mercês, no centro histórico da cidade. Eu e Josse Fares, então, juntamente com nossa amiga e pesquisadora Elaine Oliveira, realmente curtíamos, o clima de congraçamento que o momento pedia. 

Em verdade, eu só estranhava o fato de o Menino Jesus ser representado, na maioria das vezes, por um boneco de plástico, o que quebrava o enlevamento que a cena teatral necessitava. Mas os pastores, as ciganinhas, os galegos, São José, Santa Maria, a Estrela, os Anjos incorporavam a simplicidade expressiva de um grupo de atores que não frequenta escola de teatro, mas fazia valer a emoção esticando sua alma nos varais do nosso afeto. 

Saíamos da igreja mais felizes, mais crentes de que era realmente natal e que o mundo precisava mudar para fazer valer os propósitos cristãos pregados pelo Menino que nasce todos os anos no dia 25 de dezembro. Do lado de fora das Mercês, chovia fino, uma chuva de mulher, diria Eneida. Fico pensando o que há de tão complicado para que o poder público municipal, via Fumbel, possa garantir a estes grupos a subvenção e o espaço de apresentação tão necessários para a (sobre)vivência dos grupos que fazem a cultura popular em Belém e no Pará (é lastimável que o Teatro São Cristóvão, apesar da grita de alguns intelectuais e a\gentes de cultura popular tenha sucumbido ao abandono)?

O que falta para que o pano de boca das cenas se abra e provoque um sorriso no público que gosta de prestigiar os folguedos populares? Falta de vontade política? Com a resposta, as autoridades.

VII

Iracema Oliveira, à esquerda (calça vermelha, camisa branca)
Os Filhos de Assis a caminho de Belém, espetáculo de 2013 
Mais uma experiência instigante que tive com as pastorinhas se deu nos idos de 90. 1991, se não me falha a memória. Empreitamos (eu, Joséa, Josebel, Josse e Ane Fares) uma aventura em família e fundamos uma livraria-locadora de livros, a Fadas & Duendes. A Fadas era bastante frequentada, chegávamos mesmo a alugar mensalmente uma quantidade expressiva de livros. Desenvolvíamos atividades de apoio à leitura, tentando, magneticamente, atrair leitores-crianças para a viagem nos livros.

Eram momentos do conto, teatro de bonecos baseados em obras infantis, lançamentos de autores nacionais e regionais, enfim, um sem número de atividades. Entre tudo isso, nos preocupávamos em prestigiar também as manifestações da cultura popular. Assim, desde o primeiro momento de nossa existência, todos os anos, na semana do natal, apresentava-se no salão da livraria, à travessa 14 de Abril, 1589, As Filhas do Oriente, pastorinha herdada por Albertinho Bastos de sua mãe, dona Luíza Coelho. 

Ruínas frontal do que foi o Teatro São Cristóvão
Albertinho, então, já se encontrava doente, com dificuldades para locomover-se, e o grupo era dirigido por Neves Labasca, atriz e arte-educadora (que chegou inclusive a participar do clipe de Michael Jackson em Santarém). Curiosamente, após o primeiro ano de apresentação, As Filhas do Oriente passaram a trazer um elenco mirim. 

O mais velho entre os meninos gozava de quinze anos. Eu confesso, inicialmente, fiquei desconfiado, sem ter certeza se a molecada daria conta do recado. Deu, e muito bem. Tanto é assim que o sucesso de público foi maior, cresceu a procura pela peça da encenação do nascimento de Cristo. Assim adultos e velhos passaram então a disputar com crianças e jovens o espaço do salão da livraria. Então restou-nos apenas um caminho, transferir a encenação das pastorinhas para a rua. Isso, certamente, teria se transformado em uma tradição para os meninos do nosso quarteirão da 14 se o neoliberalismo não nos tivesse tirado de campo. Uma pena, de fato!

Esta experiência demonstra muito bem que é falso aquele discurso que afirma a quatro cantos que as novas gerações não se interessam pela cultura produzida por pessoas humildes da sociedade. Fica-nos esta reflexão, pois as instituições, privadas ou públicas (as segundas, principalmente) têm a obrigação de proporcionar aos agentes produtores de cultura um mínimo de condições para que eles mostrem ao público suas atividades, produto de seu lúdico - e muitas vezes sofrido - trabalho, que não pode nem deve ficar confinado, lacrado em um baú que não se pode abrir.

E afim de abrir o baú dos tempos natalinos, pesco em Bartolomeu Queirós, um trecho que ressoa em mim definitivamente e cai-nos como uma luva: “o tempo amarrota a lembrança e subverte a ordem.” É o que todos os amantes das pastorinhas e da cultura popular desejamos.


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1Alfredo Oliveira alude a estas composições em Paranatinga: Cejup, 2 ed., Belém, 1990.
2Até a década de oitenta, a SEMEC era responsável pela política educacional e cultural da cidade. Depois, foi criada a FUMBEL, que passou a organizar a política cultural do município. Hoje, este órgão, pelo que se sabe, abandonou os grupos de pastoris à proporia sorte.
3STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais da Poética tradução de Celeste Galeão. Tempo Brasileiro, 2 ed.: Rio de Janeiro,1993.

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Para saber algo sobre as pastorinhas, leia:

SALLES, Vicente. Épocas do Teatro no Grão-Pará ou Apresentação do Teatro de Época, tomo 2. EdUFPa: Belém, 1994.
FONSECA, Wilson. Pastorinhas de Santarém. Edição independente: Santarém, 1986.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Itatiaia. Belo Horizonte/ Rio de Janeiro, 7 ed., 1993.
MOURA. Carlos Eugênio Marcondes de. O Teatro que o Povo Cria. SECULT/Pa. Belém, 1997.

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